Vida de Artista - Tania Lemke

Recordo, ainda jovenzinha, recém casada, voltando dos estúdios de gravação por volta das duas da manhã - meu ex-marido era produtor artístico, do mesmo meio que eu, o que o levava a compreender meus horários e conhecer extremamente bem minha vida profissional e pessoal.

Mas, imagine, uma jovem, casada, mulher, anos 70, andando livre, leve e solta pela madrugada de São Paulo... meu pai, maestro, também conhecedor do estilo de vida dos artistas, não compreendia; imagine, então, o que pensavam as "Matildes"!?

Um dia, levanto cedo, um daqueles raros em que conseguia tal façanha, e vou até o terraço do apartamento, no segundo andar do edifício para molhar minhas plantas, uma de minhas paixões! Estou lá, quietinha, quando começo a ouvir uma conversa vinda do play-ground do prédio, que ficava logo ali, embaixo de minha varandinha florida, mais parecido com uma pequena floresta... Notei que falavam de alguém do prédio que, absurdamente segundo elas, chegava de madrugada todos os dias.

Logo imaginei: - Falam de mim! - Claro que era de mim que falavam.

- Coitado desse marido, será que ele não nota nada estranho? Uma mulher casada, honesta, não fica zanzando sozinha por ai, tarde assim! - retruca a mais fofoqueira, uma gorduxinha que eu até aquele momento achava simpática.

- Dizem que é cantora! Cantora, imagine! Deve cantar em boite! - continuou.

- Mas, será que ele não sabia? - pergunta ingênuamente uma loirinha, com cara de anjo, que morava no mesmo andar que eu.

- Mulheres de boite? São espertas. Deve ter enganado o coitadinho... ele fica muito em casa e ela na rua! - responde aquela, cujo rótulo eu ja havia modificado de simpática para cobra cascavel!!!
- Agora, eu ja notei uma coisa... - diz a viborazinha. - ele passa noites e noites fora.
- Será que ele descobriu algo e estão se separando? - Pergunta o anjinho, cujo rótulo eu já estava tentando alterar.
- Ah, neste meio de artistas querida, tudo acontece. Vai ver que ele tem uma amante. Eu também teria se fosse ele, com uma mulher assim!
Meu sangue fervia, minhas entranhas borbulhavam como se um allien fosse sair de dentro de mim. Eu poderia fazer qualquer coisa... estava com a tesoura de poda na mão, um balde com água e café para limpar as folhas e um regador cheio de água. Poderia ser de um leve banho nas duas jovens que mais nada tinham a fazer do que se preocupar com minha vida e de meu marido, que era simplesmente maravilhosa, perfeita, honesta, apaixonada, a um ataque de Eduard Mãos de Tesoura e fazer naquelas duas criaturas dois cortes de cabelo bizarro! Mas, ao mesmo tempo, eu começava a rir por achar aquilo tudo tão fútil, infantil e desnecessário. Respirei fundo, enquanto ainda ouvia mais comentários fantasiosos, levantei devagarinho, debrucei-me sobre a grade da varanda e, com o maior sorriso do mundo, disse bem alto:
- Bom dia, minhas queridas! - para receber delas o olhar mais surpreendentemente atônito que já vira.
- B-bom d-dia - responderam as duas, quase ao mesmo tempo e muito sem graça... – f-faz tempo que está ai?
- Faz sim - respondi com o mesmo sorriso!
- Estávamos falando... - começou a gorduchinha com os olhos meio assustados, dirigidos para minhas mãos!
- Eu sei do que estavam falando!
- Olha, - disse rápido a ex-cara de anjo e atual cara de sem graça - não era de você não, viu!?
- Por que acha que eu pensei que fosse de mim, querida - perguntei com o ar mais cínico que consegui retirar de minha face! Via que estavam sem graça e com jeito meio de criança que é surpreendida tomando refrigerante no gargalo.
- Porque falávamos de uma cantora e você é cantora...
Percebi então o quanto estava sem jeito a cara de anjo (já a colocara no altar novamente, senti até peninha dela então) e que a gorduxinha, até bonitinha, tão jovem quanto eu, estava muito preocupada olhando a tesoura de poda em minhas mãos.
Sentia-me um pouco mal por aquela atitude ameaçadora; olhei para as duas com carinho e disse:
- Olha, a vida do artista é realmente um pouco diferente... mas para que vocês não pensem mal dessa moça, que deve ser uma batalhadora igual a mim, subam e venham tomar um café comigo. Verão que nada há de tão diferente assim a não ser os horários. Vai ser uma delícia mostrar a vocês que existem outros modos de vida, tão corretos e moralmente aceitos quanto os seus. Ah, e caso não aceitem meu convite, só quero terminar com um comentário: meu marido e eu trabalhamos juntos, raramente chegamos separados do trabalho, embora seja às duas ou às cinco da manhã! Por isso sei que não falavam de mim. Meu marido raramente fica sozinho em casa e esta sempre comigo! E nós nos amamos!
As duas sorriram.
Não vieram neste mesmo dia, mas me interfonaram no dia seguinte me convidando para um bolinho na casa da cara de anjo. Fui, e ficamos extremamente amigas desde então!

Tania Lemke